O dever que mata o amor

“Quando chegou esse teu filho, que consumiu os teus bens…”
Lc 15, 30

De tanto chamar a Deus, “Senhor”, (e não deixa de o ser, mas certamente é “Senhor à sua maneira” e não à nossa!) podemos esquecer o nome mais belo que Jesus nos deu. O nome, “Pai”, que Jesus exprimia em aramaico: “Abba”, “Paizinho”! É com ele que Andrei Tarkovski termina o belíssimo filme “Sacrifício”. Jesus não queria que olhássemos para Deus como um rei, um senhor ou um juiz. Esses títulos evocam superioridade, exigem obediência e submissão, reclamam o cumprimento de deveres. Pai implica relação, intimidade, descoberta e amor.
É uma maravilha o pai desta parábola. Não pensa em si e não se ofende quando o filho mais novo o trata como “morto” e lhe pede a sua parte da herança. Espera-o e comove-se ao vê-lo ao longe, renunciando a toda a compostura para o abraçar e beijar. Devolve-lhe a dignidade de filho e prepara-lhe a verdadeira festa onde a alegria supera em muito as anteriores diversões e prazeres. Não pede contas dos bens esbanjados nem castiga os seus desvarios. Tudo parece pronto para um final feliz.
Mas uma sombra vem obscurecer esta felicidade. O irmão mais velho fica ressentido. Ele, que sempre tinha cumprido tudo, revolta-se com o esso de generosidade do pai. Não era justo. Os seus méritos não eram reconhecidos. Não faz sentido desbaratar mais bens com aquele que tanto desperdiçou. Sem se dar conta, dentro de si, o dever tinha morto o amor. Por isso, trata o pai como um senhor, e o irmão como um estranho.
Mais uma vez, o pai é surpreendente. Sai de casa, ouve o filho e procura reacender nele, de novo, o amor apagado. Está sempre a caminhar este pai! A ir ao encontro dos filhos perdidos. Um perdido na distância, outro na proximidade; um na desobediência, outro no dever. Que frase tão bela diz ao filho mais velho: “Tu estás sempre comigo”! E insiste na necessidade da festa. Como que para nos dizer que todo o perdão é uma festa, e que nem a teologia, nem o direito canónico, nem a catequese, nem a liturgia podem esquecer isto. Trazemos um pouco dos dois irmãos na alma? Umas vezes um, outras, o outro? E do pai, o que transparecemos? A casa do Pai, que também acredito ser a Igreja, produz a memória feliz que alimenta a esperança de um regresso? Com que alegria e projecto de crescimento acolhemos? Que disponibilidade criamos para fazer festa? É muito difícil dizer “Pai” simplesmente por dever!
Padre Vítor Gonçalves

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