“Depois, Jesus obrigou os discípulos a embarcar e a ir adiante para a outra margem, enquanto Ele despedia as multidões. Logo que as despediu, subiu a um monte para orar na solidão. E, chegada a noite, estava ali só. O barco encontrava-se já a várias centenas de metros da terra, açoitado pelas ondas, pois o vento era contrário. De madrugada, Jesus foi ter com eles, caminhando sobre o mar. Ao verem-no caminhar sobre o mar, os discípulos assustaram-se e disseram: «É um fantasma!» E gritaram com medo. No mesmo instante, Jesus falou-lhes, dizendo: «Tranquilizai-vos! Sou Eu! Não temais!»”
Mt 14, 22-27
“Quando caminhava para Jerusalém, Jesus passou através da Samaria e da Galileia. Ao entrar numa aldeia, dez homens leprosos vieram ao seu encontro; mantendo-se à distância, gritaram, dizendo: «Jesus, Mestre, tem misericórdia de nós!» Ao vê-los, disse-lhes: «Ide e mostrai-vos aos sacerdotes.» Ora, enquanto iam a caminho, ficaram purificados. Um deles, vendo-se curado, voltou, glorificando a Deus em voz alta; caiu aos pés de Jesus com a face em terra e agradeceu-lhe. Era um samaritano. Tomando a palavra, Jesus disse: «Não foram dez os que ficaram purificados? Onde estão os outros nove? Não houve quem voltasse para dar glória a Deus, senão este estrangeiro?» E disse-lhe: «Levanta-te e vai. A tua fé te salvou.» “ Lc 17, 11-19
Estas duas leituras são um convite ao louvor em vez do temor. Mas para agradecer é preciso reparar nas coisas boas, lembrar-se delas. Qual é o nosso auxiliar de memória?
Talvez alguém já tenha visto o Filme Memento (do Christopher Nolan) em que um homem perde a memória a todo o instante. Como é que ele consegue viver? Escreve num diário e em papelinhos o que vai vivendo para que quando perde a memória, por consulta a estas palavras, consiga recuperar o fio condutor da sua vida.
Imaginem o que é darem convosco na mesa de um café sem saber como foram ali parar nem o que estão ali a fazer. E imaginem que não têm o auxiliar de memória.
No filme é assim e assim somos nós às vezes. Damos com outra pessoa chateada connosco e perguntamos o que se passa. Não sabemos como chegámos ali. Já nos esquecemos que comemos o resto todo do bolo sem perguntar se o outro queria. Mas o outro não tem problemas de memória e faz questão de nos lembrar quem somos: “És um ou uma egoísta”. A memória parece ser mais selectiva para nos lembrar as coisas negativas.
Se eu não tiver outro auxiliar de memória, alguém que me lembre que Deus me ama apesar da minha pobreza, vou acreditar nos pensamentos negativos e nos medos e viver aprisionado por eles.
O nosso auxiliar da memória de quem somos é a palavra de Deus, é a comunidade. Também nós temos de orar com a palavra, de escrever, para cimentar a relação com o Senhor, e para que nos momentos de trevas possamos ler, recuperar quem somos a partir da relação com ele, lendo a Sua palavra, ou o nosso caderno.
Outra imagem que me ocorre para o que se passa connosco é a do sonâmbulo. O problema do sonâmbulo não é que durma. É que dorme mas pensa que está acordado. Tal como nós pensamos que temos claro as coisas de Deus, mas ainda percebemos muito pouco e estamos prestes a tropeçar num frigorífico.
A um sonâmbulo tu não lhe vais acordar à força. Encaminhas para a cama – o lugar do descanso, e onde, a devido tempo, sem que o controlemos, o sonâmbulo se desperta.
Volta e meia somos sonâmbulos, e oxalá haja quem nos encaminhe periodicamente para o lugar do descanso – o lugar onde encontramos a Deus – como uma capela, para que aí descansemos encontrando a verdadeira paz. Numa capela o facto de dormirmos – a nossa inconsciência – não afeta ninguém, e é num espaço ou num tempo como este, que o Senhor nos pode fazer despertar para a verdadeira vida.
Por isso peçamos ”Senhor desperta-nos”.
O despertar é lento. O senhor sabe que despertamos melhor se fôr devagar. Primeiro abre-nos ligeiramente a cortina para que vejamos um pouco mais da vida lá fora, depois fala-nos um pouco ao coração. E a certa altura somos já nós quem se põe da cama para fora e saímos ao seu encontro.
Foi assim com os discípulos. Ao princípio não percebiam nada. E nós já vamos percebendo alguma coisa, com a ajuda uns dos outros e sobretudo do Senhor.
Quantas vezes Jesus disse aos apóstolos que não estavam a perceber nada? Por exemplo a Pedro, depois de tanta coisa já vivida juntos (Mt 16, 21-23)
Se era assim com eles, que o tinham a seu lado em carne e osso, connosco também é muito natural. O que é que não percebemos ainda? Talvez tudo aquilo que não conseguimos viver desde uma relação com ele. O que não percebemos ainda não é tanto aquelas coisas tóxicas pontuais que às vezes nos saem e de que nos arrependemos.
O que não percebemos ainda são as convicções mais profundas de autosuficiência que o dispensam a ele, que não lhe reconhecem a elevada responsabilidade no que conseguimos fazer. É a auto-estima baseada em sucessos pessoais. É a falta de consciência de que o amor de Deus se importa pouco com os meus sucessos, porque é incondicional, e gosta de mim pelo que sou e não pelo que faço.
Qual vai ser o problema do Ronaldo quando chegar ao céu? É que o Senhor vai-lhe perguntar: “E tu quem és?”
E ele naturalmente responde “Sou o Cristiano Ronaldo, melhor jogador de futebol do mundo”
E o senhor perguntará novamente “Não, mas quem és?”
“Cristiano Ronaldo, jogador de futebol do Real Madrid”
Acham que ele se vai lembrar de dizer “Sou teu filho. Sou o teu filho amado”?
Oxalá que sim, mas possivelmente não, porque o sucesso nos dificulta as coisas.
O Ronaldo não responde quem é, responde o que faz.
Deus gosta de nós pelo que somos e não pelo que fazemos.
Será que já percebemos quem somos (filhos de Deus), e que Deus gosta de nós por isso?
O silêncio ajudar-nos-à a recuperar essa consciência do amor de Deus por nós, que nos revela quem somos. Ele abandonou um filho à morte por nós. Logo que possam ouçam (já devem conhecer) a música do Eric Clapton “Tears in Heaven”. O Eric perdeu um filho que caiu aos 4 anos de um 10º andar, e esta música é dedicada ao filho. Isto ajuda-nos a introduzir no que sente um Deus por um filho que perdeu por nossa causa. É esta a qualidade do amor de Deus por nós. É difícil não nos comovermos e não mudar um bocadinho por dentro.